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terça-feira, 22 de março de 2011

Rubem Alves - O Retorno e o Terno: crônicas

Foi-se, finalmente, o Verão, não sem antes, fazer algumas grosserias e malcriações: trovejou, relampejou, choveu, inundou. Não queria ir embora. Compreendo. Queria ficar para ver e namorar o Outono, que é muito mais bonito que ele. Verão, quarentão: recusava-se a aceitar os sinais da passagem do tempo. Não queria dizer adeus. Gostaria de ficar. A vida é tão boa! Mas o tempo é implacável. O Sol disse que a hora do seu adeus havia chegado. Foi se inclinando no céu, suas viagens cada vez mais curtas, as noites mais longas, o crepúsculo chegando mais cedo, as manhãs chegando mais tarde. O vento antes convidava a que se tirasse a camisa. Agora ele causa arrepios e chama os agasalhos das gavetas onde dormiam. O céu fica mais azul. Deve ter sido numa tarde de Outono que os Beatles compuseram aquela balada que canta: “...because the Sky is blue it makes me cry...” E o verde das plantas fica mais verde. O Verão é inquieto. Tudo nele convida a sair e a agir. O Outono é tranqüilo, introspectivo, convida ao recolhimento e à meditação. É um convite ao pensamento.
Gosto especialmente das suas tardes. O Verão é a estação do meio-dia. O Outono vive mais ao sol que se põe. E como são belos os dois, O Outono e as tardes. Há uma pitada de tristeza misturada no ar. “O que é bonito enche os olhos de lágrimas”, diz a Adélia. Os dois se parecem porque os dois estão cheios de adeus.

A tarde

... é este sossego do céu
com suas nuvens paralelas
e uma última cor penetrando nas árvores
até os pássaros.
É esta curva dos pombos, rente aos telhados,
este cantar de galos e rolas, muito longe;
e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,
ainda sem luz...

Na cidade onde eu vivi, no interior de Minas, ao crepúsculo se tocava a Ave Maria, e era como se toda a natureza parasse e rezasse. Eu gostava de ficar olhando para as árvores: havia uma imobilidade absoluta no ar. Nem um único tremor perturbava a tranquilidade pensativa das folhas. E as nuvens ao poente se coloriam de verde claro, passando pelos, amarelos, laranjas, e vermelhos, até o roxo, que se preparava para desaparecer na escuridão. Tudo belo. Tudo triste. E pensamos pensamentos diferentes daqueles de durante o dia. Para Wordsworth,

as nuvens que se ajuntam ao redor do sol que se põe
ganham seu colorido triste
de olhos que têm atentamente
observado a mortalidade dos homens.

O crepúsculo e o Outono nos fazem retornar à nossa verdade. Dizem o que somos. Metáforas de nós mesmos, eles nos fazem lembrar que somos seres crepusculares, outonais. Também somos belos e tristes... Como o Verão quarentão também nós não queremos partir... Paul Bouget nos diz:

Quando, ao sol que se põe, os rios ficam cor de rosa
e um leve tremor percorre os campos de trigo,
parece das coisas surgir uma suplica de felicidade
que sobe até o coração perturbado.
Uma súplica de degustar o encanto de se estar no mundo
enquanto se é jovem e a noite é bela.
Pois nós vamos,
como se vai esta onda:
Ela, para o mar,
nós para a sepultura.

Quem quer que pare para ouvir as vozes do Outono e da tarde perceberá que, dentro da sua beleza, nos falam a nossa vida e a nossa morte. Nada de mórbido. Só podem viver bem aqueles que aprendem a sabedoria que a morte ensina.
Foi assim que o professor de literatura, no filme A sociedade dos poetas mortos, iniciou o aprendizado dos seus alunos. Vocês se lembram? Levou-os até uma fotografia onde se encontravam, imobilizadas sobre o papel, pessoas. Agora todas estavam mortas. Também nós, um dia. A lição da poesia é que é preciso contemplar o crepúsculo no horizonte para se sentir a beleza incomparável do momento. Cada momento é único. Não há tempo para brincadeiras. Carpe diem: colha o dia, como algo que nunca mais se repetirá, como quem colhe o crepúsculo, “antes que se quebre a corrente de prata, e se despedace a taça de ouro...” Beba cada momento até as últimas gotas. É preciso olhar para o Abismo face a face, para se compreender que o Outono já chegou e que a tarde já começou. Cada momento é crepuscular. Cada momento é outonal. Sua beleza anuncia seu iminente mergulho no horizonte.
Quando o sol está a pino estas idéias não nos perturbam. Tudo parece estar bem. Há muito tempo ainda. As rotinas do trabalho ocultam a nossa verdade. Mas elas não podem impedir nem que a tarde chegue, com suas cores de adeus, e nem que o Outono chegue, anunciando a proximidade do Inverno. E eles nos forçam a ter pensamentos diferentes, pensamentos de solidão. São mestres silenciosos. Se prestarmos atenção e ouvirmos o que nos dizem, ficaremos sábios. Porque sabedoria é isto: contemplar o abismo, sem ser destruído por ele. Nas palavras de Rilke, “conter a morte inteira, docemente, sem nos tornar amargos”.
Rubem Alves

O Retorno e o Terno: crônicas. Campinas, SP – Editora Papirus, 1997, p. 95-97.

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